Desconfiai do mais trivial, na aparência singelo.
E examinai, sobretudo, o que parece habitual.
Suplicamos expressamente: não aceiteis o que é de hábito como coisa natural, pois em tempo de desordem sangrenta, de confusão organizada, de arbitrariedade consciente, de humanidade desumanizada, nada deve parecer natural nada deve parecer impossível de mudar.
(Bertold Brecht)
A cabeça da gente é um terreno fértil e como dizia o gigante Waldimir - um grande amigo da minha família que já morreu e que me causava espanto pela risada franca, o afeto por meu pai, por ter na extremidade da mão sempre um copo de scott e pelo tamanho - alguns, como eu, parecem mesmo ter um sonrisal na cabeça. As coisas vão efervescendo até que uma hora a coisa decanta e fica clara a conclusão.
Na iminência do plebiscito, resolvo fazer uma boquinha de urna. Não me estranhem, não me julguem. Eu não sou passível de multa nem de condenação, nesse quesito, quero dizer. É que a minha efervescência acabou hoje e o sólido da decantação surgiu.
Andei algum tempo confundindo a proposta com o método, além de ter me deixado levar, é bem verdade, pela antipatia que os nossos amigos petistas andam conseguindo angariar nas mais variadas pessoas, algumas delas como eu, que foram intrinsecamente de esquerda, até por uma questão hereditária, a vida toda.
No entanto, eis que um raio de luz me atinge em cheio, depois de um telefonema bastante aflito da minha mãe (não são mesmo elas que dão à luz?) pela minha transparente indecisão e tendência a votar nulo.
Ela lê pra mim uma poesia de Brecht, que posto abaixo, para clarear as minhas idéias e pra fazer vocês se morderem de inveja da mãe que eu tenho. Quantas lêem Brecht pros seus filhos ao telefone, numa sexta-feira, a caminho do aeroporto, tendo como destino o show de Tony Bennet no Rio de Janeiro? Há!
Voltando à vaca fria, o discurso confuso, mal arranjado e incompetente do SIM e do NÃO, a turva ideologia dos que apóiam a indústria armamentista e a postura naive dos que lutam pelo desarmamento não podem me impedir de ver o que é essa proposta. Qual é o meu papel, embora meio quixotesco, contra o dragão da maldade?
Et voilá, eis que me decido!
Amanhã, eu voto e peço a quem conheço, aos que gosto, admiro ou mesmo tenho uma remota convivência que votem SIM.
Por quê?
Por nós, pelos meus filhos, pelos seus, pelos que virão. Porque a gente não pode confiar no bom senso e no eterno equilíbrio do cara que tem uma Walter PPK ao seu dispor. Pra ser bem megalômana, é só lembrar do brilhante e bem preparado presidente (tenho que explicar, porque, pelos adjetivos, podia ser o nosso) norte-americano achando que é O cara, que ele e somente ele pode conhecer, julgar e intervir na vida de qualquer povo.
Faça a pergunta: o que dá a ele essa ousadia? Será que ele é proveniente de uma família de homens brilhantes, intelectual e moralmente irretocáveis? Será que é por ser o presidente da maior e mais rica nação do planeta?
Não, amores. É só porque ele tem uma bombinha atômica e o poder de decidir por todos nós quando acaba nossa historinha aqui. Ai o cara é mesmo Deus, não pode ser comparado a um muçulmaninho ou um pretinho acostumado às mazelas e misérias da vida, né mesmo?
Que nem o cara com uma arma apontada pra cabeça de alguém. Você sabe quem é o cara? Não?
Nem eu. Mas que ele pensa que é Deus, pode ter certeza. E a vitamina da esquizofrenia de ambos tem nome: ARMA.
De Que Serve A Bondade
(Bertold Brecht)
1
De que serve a bondade
Se os bons são imediatamente liquidados,ou são liquidados
Aqueles para os quais eles são bons?
De que serve a liberdade
Se os livres têm que viver entre os não-livres?
De que serve a razão
Se somente a desrazão consegue o alimento de que todos necessitam?
2
Em vez de serem apenas bons,esforcem-se
Para criar um estado de coisas que torne possível a bondade
Ou melhor:que a torne supérflua!
Em vez de serem apenas livres,esforcem-se
Para criar um estado de coisas que liberte a todos
E também o amor à liberdade
Torne supérfluo!
Em vez de serem apenas razoáveis,esforcem-se
Para criar um estado de coisas que torne a desrazão de um indivíduo
Um mau negócio.
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