sexta-feira, 18 de agosto de 2006

A Palavra & outras novidades

Eu sempre fui de escrever. De ler e de escrever. De falar também, muito e pelos cotovelos. Aliás, isso eu já fazia antes mesmo de saber ler e escrever.

Reza a lenda de que a tagarelice dos meus filhotes é herança minha. Mas o que eu tenho de mais forte em mim talvez seja o encantamento pela palavra: falada, escrita, lida, cantada, intuída, berrada, sussurrada, imaginada, desenhada na areia ou que surge em grandes espirais de nuvens. E são desde sempre meus a absoluta concentração e o enamoramento que me tomam quando encontro gente que tem o dom da expressão por esse meio.

Bão, deixando o blábláblá de lado, eu comecei a escrever coisas diferentes da que eu ando acostumada aqui. Taí o primeiro capítulo que eu nem sei se terá segundo, mas valeu pra mim como tentativa e treinamento. Sejam condescendentes, sim? Brigadinha.


***


Era tarde. Incerta hora escura e quente. Janelas abertas e cortinas amarradas no quarto em desleixo. Cama desarrumada e ninguém deitado. Roupas por cima de uma cadeira preta zebrada no assento. Um par de chinelas azuis claras, meia dúzia de livros, um pequeno bloco de folhas quadriculadas, uma caneta sem tampa, uma grande almofada floral. Um cheiro morno de quintal em época de fruta, um zumbido de gerador. Nenhuma luz além da de cor alaranjada, vinda de algum anúncio que vazava pelo basculante. Nenhuma coisa verde, nenhuma plantinha de plástico. Nenhum animal, nem peixe. Criança ou gente também não havia. Era uma casa vazia.
Não gostava de chegar e achar tudo como havia deixado muitas horas antes. Entrava contrariada, já cansada, com as pernas pesadas e os pés um pouco doídos. Sempre estranhava o ar molhado daquele lugar e não sabia nunca dizer o que a incomodava mais: a bagunça da casa, a exaustão do corpo ou o sentimento de repetição. No fim, era só uma mistura de desagrados.
Fora a cama e a banheira antiga, não sentia prazer em estar noutro lugar. Olhava pra sala com aqueles móveis meio decadentes, marronzinhos, com pés de palito que o amigo decorador indicou como sendo ‘vintage’. Via os dois únicos quadros na parede e pensava que nunca os teria comprado novamente. Não cozinhava e, naquele ambiente inóspito, chamado cozinha, morava uma geladeira high tech, com porta dupla de inox, completamente destoante, que havia chegado lá como prêmio de consolação do último namorado rico. Segundo ele, era só uma forma de agradecer por tê-lo apresentado a Mila, sua atual mulher e mãe de seus dois filhos.
"Lá dentro é possível criar uma família de esquimós", ela pensou e riu. Assustou-se com o som da quase gargalhada que ecoou. Censurou-se e depois riu mais ainda da falta de intimidade com o silêncio e com a própria voz. Abriu a porta para o oco daquela geladeira Iglu e foi imediatamente lembrada de que tinha tido preguiça demais pra fazer compras. Tinha como opções, um vinho-vinagre, um suco de pêra em caixinha ou água mineral. Pra comer, só uns palitos de chocolate meio derretidos dentro do armário.
Com o pacote desajeitadamente preso entre o mindinho e palma da mão e um copo de promoção, com quase um litro de suco, rumou pro quarto, sem soltar a bolsa ou tirar o casaco. Tinha aquela mania de entrar já pondo as coisas nos lugares errados. Bolsa e biscoito na cama, casaco no chão, sapatos chutados sem cuidado, suco equilibrado na cabeceira mais alta.
Desabotoou o primeiro botão da calça e deitou-se de lado. Alcançou lenta o controle remoto, brincou de formar frases estranhas com as vozes de canais diferentes, anotou como de costume as mais engraçadas. Comeu aquele palitinho como se fosse um lauto jantar, bebeu o suco degustando cada gole, largou o pacote com um único sobrevivente e o copo vazio debaixo da cama.
Ajoelhou-se na cama, viu seu rosto no espelho, amarrou o cabelo longo num nó. Não aprovou a arte final, mas consolou-se pensando que amanhã acordaria mais cedo. Encheria a banheira de óleos deliciosos, tomaria um café com frutas naquela padaria nova, cortaria o cabelo, faria compras. Amanhã, a faxineira viria, a casa estaria perfumada, limpa e em ordem. Amanhã ela compraria, com certeza, um vaso de pequenas calanchoês, duas pequeniníssimas violetas brancas e uma gérbera. Daquele laranja quase vermelho, com o miolo escuro! Daí, sim, podia levar Miguel à sua casa. Amanhã.
O despertador tocou às 6h20. Isa pulou da cama, correu pro chuveiro, mal escovou os dentes. Vestiu-se com pressa e saiu atrasada, mastigando o último palito de chocolates pelo caminho. Foi pegar o ônibus. Eram 7h51, quando bateu o ponto.