Como prometido...
Para mim e para Otto*
Preciso fundar em mim a disciplina da fidelidade. Preciso aprender a ser fiel a mim mesmo, às verdades que me são reveladas e que eu busco, num certo sentido, esquecer e malcurar, pois nenhuma tarefa é tão pesada como a de pastorear o ser das coisas que a nós se revela. Preciso aprender a trabalhar com método calmo e transparente amor. A revelação, a iluminação, nada mais representam do que o bloco de pedra a partir do qual se há de arrancar a escultura. Preciso aprender a tornar-me o escultor cotidiano, aquele que acorda e dorme a sua obra, no desfiar dos dias que se sucedem, com paciência e silenciosa paixão. Preciso pesar menos e obrar mais. Preciso ser menos eruptivo e mais fluente. Preciso fluir, manar, desdobrar-me, descobrir-me, preciso permitir que as águas venham da rocha profunda. Pois só na medida em que as águas surgem é que elas renovam. Do fluir decorre a fluência. (...) Não resta dúvida de que, às vezes, as coisas parecem que nos são dadas por acréscimo, por superabundância, por graça. Mas estas coisas que nos são dadas de graçça exigem de nós, depois, a paciente perseverança, o aturado e duradouro calor, capaz de transformar-nos nos guardiões da graça do ser que a nós se revelou. O preço da graça que recebemos é nos mantermos fiéis a ela, é nos tornarmos os porta-vozes dela, nos fazermos a voz dela, a linguagem dela. A graça quer aceder ao mundo através da nossa boca que fala. Fala boca, para que te possas, depois, calar com dignidade. Fala, para mereceres o silêncio, que vem depois, como a noite vem depois do dia. Fala.
*bilhete datilografado, assinado por Hélio Pellegrino, para Otto Lara Resende.
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